Advertência

A Esquizofrenia Cor de Rosa é um espaço onde são despejados pensamentos, o mais inalterados possível da sua forma primordial. Não se pretende aqui construir um "cantinho" de discussão científica, filosófica, religiosa, histórica ou de qualquer outra índole. A realidade dança o tango com a ficção; o senso comum luta com a ciência, numa batalha onde ninguém sairá vencedor. Cabe-lhe a si, leitor, interpretar da maneira que lhe aprouver. Sinta-se livre para comentar, criticar ou lançar sugestões!

terça-feira, outubro 16, 2018

Afinal o que é isso de trabalhar "nos" cruzeiros?!

Ora cá estamos. Decorrida quiçá uma meia década, e a pedido de duas ou três pessoas (ok... uma, se excluirmos a minha mãe),  estou de volta para vos deliciar com um texto que promete ser mais bem compostinho do que aquilo a que tão bem tenho habituado os meus fiéis 6.2 seguidores.

Calma. Não fiquem já a pensar que a Teresa que agora vos escreve - depois de licenciada em Direito, depois de passar pelo estágio na Ordem dos Advogados e depois de deitar esses anos todos fora aventurando-se no trabalho marítimo - agora está uma senhora madura e com uma vida rica e a transbordar estabilidade. Continua tudo na mesma! A diferença é que agora tenho bastante prazer em ser uma pateta alegre e nada me deixa mais feliz do que poder exteriorizar o meu lado excêntrico com a auto-confiança que as águas internacionais me deram.

#1. E começo exactamente por aí: o Desenvolvimento da Personalidade.
Quem se aventura a ir trabalhar para um hotel que flutua pelo mar, em 90% dos casos vai sozinho. Selecciona todos os items que considera essenciais à sua sobrevivência durante 6 ou 8 meses, atafulha-os todos dentro de uma ou duas malas, mete-se num avião e seja o que Deus quiser!
Este ritual é feito com muitas dúvidas, incertezas e medos. Quando, há dois anos e picos, dei por mim a dizer adeus à minha mãezinha no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o meu estômago começou a fazer ioga. "E agora, se alguma coisa correr mal.... Desenmerdo-me!" Pensei. É um pensamento agonizante mas quando finalmente aceitamos que nem tudo está sob o nosso controle, surge uma sensação de alívio e de segurança que não consigo descrever. Lembro-me de me ter sentido uma verdadeira Wonder Woman. E a partir daí passei a viver a minha vida de uma nova forma: passo a passo. Tento sempre ser prudente e cautelosa, tento planear as minhas caminhadas. Mas agora sei aceitar o desconhecido e manter a mente aberta às oportunidades que vão surgindo. Às vezes, o foco no objectivo acaba por nos limitar, pois deixamos de responder aos estímulos que nos rodeiam e que começamos a ver como distracções e obstáculos. Essas distracções muitas vezes são alternativas ou até mesmo oportunidades melhores mas que subconscientemente ignoramos na convicção de estarmos a seguir o que é melhor para nós. Ao perceber que cada dia traz novas aventuras e desafios, aprendi a estar constantemente pronta para "a guerra", a ter os meus sentidos mais alerta. Estar sozinho num mundo multi-cultural obriga-nos a chegar ao limite do nosso potencial. Temos de ir buscar toda a inteligência possível para nos adaptarmos o quanto antes ao meio circundante. Por exemplo: eu sempre fui exímia a expressar-me na língua portuguesa. Nos navios isso não me serve de nada. Ok, não foi um bom exemplo. Mas acho que percebem o que quero dizer. Têm de estar atentos à linguagem corporal dos colegas e dos passageiros. Têm de aprender mil e uma regras sobre um mundo completamente novo. Têm de aprender a expressar-se em línguas estrangeiras. Têm de saber controlar as emoções 24h por dia, porque nunca - reforço NUNCA - se está sozinho.

#2. A propósito de nunca se estar sozinho: a Falta de Privacidade.
Nos cruzeiros, trabalha-se por equipas. Há o departamento do atendimento ao cliente, o dos músicos, o do entretenimento, o dos fotógrafos, o dos oficiais, o dos cozinheiros, o dos dançarinos, o dos clubes das crianças, etc., etc.. As equipas trabalham cerca de 12h por dia. Estamos juntos no local de trabalho mas também nas pausas para refeições e também quando saímos do trabalho, pois continuamos fechados no mesmo sítio e só há um local onde podemos socializar se não quisermos comer ou dormir: o crew bar. Para comer, temos as Staff e Crew Mess, os oficiais têm Officer Mess que é uma cantina com comida menos medíocre (a qualidade da comida varia com as companhias de cruzeiros, mas em regra geral não é má... Só não é muito amiga de quem quiser seguir uma dieta saudável). No que toca a dormir, temos as cabines, que tirando posições mais privilegiadas, são compartilhadas com um colega do mesmo departamento. E no tal Crew Bar, é onde se mistura toda a tripulação. O que tem lá? Bebidas a preço da chuva e a possibilidade de andar com roupa pessoal, desde que se use o crachá com o nome - que é obrigatório sempre que estejamos a bordo. Toda a gente sabe três coisas sobre nós: o nome, o cargo e a nacionalidade. E eu, como recepcionista de Spa, conseguia com o nome saber mais coisas sobre a malta, porque era só meter o nome no sistema e dava para ver também a foto da pessoa no dia do embarque, a idade e número da cabine! Se era útil, isso agora... Mas é para verem como a privacidade é coisa que não existia. Para ficar sozinha, só mesmo na casa de banho! E mesmo aí...
Vou partilhar a pior situação que me aconteceu neste último contrato.
A minha colega de cabine era uma menina muito serena e simpática, oriunda da Indonésia, com cerca de 22 anos de pureza naqueles ossinhos robustos e feições harmoniosas do oriente. Uns 4 ou 5 dias depois de eu chegar àquele navio, já com a minha barriga tipo balão de aniversário, vou finalmente ao nosso cubículo de wc, para arrear o que viria a ser não um calhau, mas uma reconstituição do Cromeleque dos Almendres. Sucede que eu não gosto de trancar portas, especialmente quando estou nos navios, porque nunca se sabe o que poderá acontecer. Ora então, a minha prezadíssima colega de cabine decide abrir a porta do cubículo, quando eu tinha acabado de fazer a maquete do megalítico, que ainda estava a sedimentar no fundo do trono, libertando todos aqueles vapores de decomposição, depois de ter estado dias a fermentar no meu intestino. Mais tarde, a miúda veio a confessar ter ficado com a sensação de que eu tinha saído da cabine em vez de ter entrado no wc porque - para minha grande surpresa - lhe pareceu tudo muito silencioso. Eu disse-lhe que ainda que tenha sido embaraçoso para mim, certamente que levar com aquela aragem pérfida sem estar a contar deve ter sido mil vezes pior. Encarem a realidade, meus senhores. Meninas bonitas também cagam. E quando se viaja, o assunto é sério. Muito sério.

#3. O Protagonismo.
A multi-culturalidade a bordo não é novidade para ninguém. O que talvez seja novidade é que ser europeu é quase como ter sangue azul. Eu não fazia a mínima ideia disto, mas para a malta do oriente, as nossas feições são consideradas exuberantemente bonitas. Eu, no meio daquela gente toda sinto-me uma Taylor Swift.
Acresce que - e quem me conhece pessoalmente sabe que não estou a mentir - eu sou uma miúda dotada de uma simpatia extrema, e tenho desenvolvido ao longo dos anos um à vontade muito peculiar, sendo que de um momento para o outro deixo de me comportar como a Primeira-Dama e passo a uma vendedora de castanhas do Bolhão. Quando estou nos navios, os meus colegas idolatram-me pelo simples facto de lhes dizer olá com um sorriso. E eu não me coíbo de abraçar este papel de estrela da Casa dos Segredos que naturalmente me cai sobre as costas: aceito tirar fotos com a rapaziada da lavandaria com a mesma satisfação com que agradeço os chocolates e garrafas de vinho tinto do melhor que houver a bordo.
Há algo de maravilhoso nesta popularidade marítima: é que quando retorno a casa, os meus próprios vizinhos que moram neste prédio tal como eu há quase vinte anos têm dificuldade em reconhecer-me e é raro tomarem iniciativa para dizer "bom dia". O que há de maravilhoso nisto? Uma vida dotada de tranquilidade.

#4. O Ódio pelos Passageiros.
A indústria dos cruzeiros é movida pelo (dinheiro do) Passageiro. Esse ser que se assemelha à figura mítica do Ogre.
O Passageiro é um ser com metade do QI em vinha d'alhos, pois está em modo vacances.
Todos os dias, a tripulação é forçada a relembrar-se de que, sem os passageiros, não haveria dinheiro a entrar para os salários. Os nossos empregos existem porque é preciso servir os passageiros.
Contudo, por muito que se repitam estas premissas, a nossa boa vontade é posta à prova constantemente.
Isto acontece porque o Passageiro não quer saber se chegaste ontem ao navio e tens dificuldade em dar com a tua cabine quando sais do local de trabalho. Ele precisa de saber onde são servidos os snacks da tarde e precisa de saber JÁ, incluindo as coordenadas do local e horário de funcionamento.
O Passageiro não quer saber se ligou para o Spa. Precisa da cama de casal na sua cabine, tal como tinha pedido. E não de duas camas individuais.
O Passageiro não tem em conta o uniforme branco com as listas no ombro ou o macacão de quem trabalha com os motores. Ele está com sede e quer pedir um cocktail (de preferência sem pagar extra porque já pagou a estadia).
O Passageiro não quer saber se estás finalmente nos teus sagrados 45 minutos de break para jantar, após 7h de pé atrás de um balcão. Ele precisa de encontrar um wc e quer que o leves pelo braço porque está farto que lhe dêem indicações e também não gosta de interpretar sinais.
O Passageiro quer que arranjes algo para entreter o seu filho no Spa o dia inteiro porque está farto de o aturar e quer ir esbanjar dinheiro no Casino.
Enfim. Podia passar a tarde a enumerar situações que fizeram crescer dentro de mim este sentimento de repúdio para com passageiros. São criaturas que amamos odiar e odiamos (fingir) amar.

#5. As Amizades que ficam para a vida.
Quando decidimos meter a casinha às costas e enveredar nesta aventura, deixamos a nossa cama para trás, a comidinha caseira, o conforto da família, as manhãs patrocinadas pela Rádio Comercial, as cafezadas com os amigos, etc., etc.... Mas a partir do momento que chegamos ao navio, todos os colegas que conhecemos estão na mesma situação. Estamos literalmente todos no mesmo barco. E algo de mágico acontece. Criam-se relações de amizade próximas em 2 ou 3 dias. As pessoas apaixonam-se loucamente. Odeiam-se num piscar de olhos. Fazem as pazes ou passam a ignorar-se. Separam-se e reencontram-se. Há todo um carrossel de emoções que só quem já lá esteve sabe como é. É tudo rápido e muito intenso. E este contacto tão próximo com gente do mundo inteiro é para mim, talvez, o melhor que esta vida de marinheiro oferece. Já nem vou entrar na parte de andar lá muito boa gente a experimentar nacionalidades, como quem vai a um buffet temático de comidas do mundo... É que uma pessoa vê e ouve cada coisa de ficar de boca aberta. Fica o aviso: quem for mais reticente a maneiras diferentes de encarar a vida, que fique por terra porque no mar só anda gente doida. Foi o que me disseram quando lá cheguei. E acrescentaram logo "mas não faças esse ar de espanto porque se também cá estás, certamente que também não jogas com o baralho todo".


Reparem que nem vos falei da parte de viajar, que é um tema tão prazeroso. A verdade é que aquelas fotos maravilhosas da malta que trabalha nos cruzeiros são um engano. Na esmagadora maioria dos casos, os chefes dão-nos umas míseras três ou quatro horitas a meio do dia para sair do navio e ir brincar às pessoas livres e felizes. Uns pegam nessas horas e vão dormir. Outros decidem tirar o máximo partido daquele precioso tempo. Tudo depende do estado de exaustão daquele dia e também das prioridades de cada um.

E aqui fica um pouquinho daquilo que é trabalhar a bordo de uma embarcação de passageiros. Não vou alargar mais o tema, sob pena de me tornar fastidiosa. Aguardo com ansiedade o feedback daquelas almas corajosas que chegarem ao fim do texto. Um abraço forte e até breve.

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